

Estava lendo alguma coisa que agora não me lembro e pensei: às vezes dá pra ver o gesto de quem escreve, por trás do texto. É uma imaginação, mas eventualmente ela parece bastante precisa. Nesse texto, que já não lembro qual, imaginei seu autor eufórico na cadeira – como um físico que estivesse perto de resolver uma fórmula. Enquanto lia, sentia essa espécie de gana por trás das letras, como se aquelas palavras saíssem de uma boca espumando em êxtase. Pensando nesse autor eufórico, lembrei que precisava escrever esse texto aqui, um pensamento e diálogo com Badyboy e Arrepio. Me perguntei, então, qual gesto poderia ser revelado como pano de fundo dessa escrita: outro, distinto da euforia inventiva, mas igualmente enérgico.
O gesto aqui, me parece, é o de um menino que coleta pelos cantos acontecimentos de maior ou menor grandeza, como que roubando doces e oferecendo de volta travessuras. Em Badyboy e Arrepio, livro de estreia do autor, Caique aproxima a escrita do delito, do banal e do violento, sem perder de vista o sublime. “Travessura”: traquinagem, arte, diabrura, maldade. 1. Uma brincadeira ou ato malicioso, geralmente sem intenção de causar grande dano. 2. Comportamento livre e ousado, comportamento travesso. O gesto de Caíque é o de um menino travesso, essa escrita um deleite de delito. Encontro essa palavra, travessura, e repito ela muitas vezes, ela parece chegar ao ponto que queria, porque aqui, arte, maldade, traquinagem, invenção, brincadeira e liberdade parecem estar em consonância.
A escrita de Caíque – essas múltiplas vozes, os estalados gritos de vários badyboys – ganha força na medida em que persiste, e para isso foram infinitas páginas no word. Seu gesto não cessava, ele descobria em si um escritor compulsivo enquanto copiava ininterruptamente toda e qualquer coisa que ouvia ou via por aí. E eu tive a alegria de acompanhar de perto esse texto ganhar contorno, trabalhando junto para encontrar caminhos possíveis, sempre lembrando de respeitarmos o gesto primordial: o registro compulsivo, a coleta de palavras, o roubo, a escuta, a descoberta (ou redescoberta?) do prazer pela linguagem, a confiança na profusão, o nonsense decorrente da profusão, etc.. Tentava proteger o menino, agora vejo. A leitura de Bady boy é sinuosa, não aponta para uma direção única, e não faz questão de responder às muitas questões que eventualmente levanta, ou talvez, opere em outros registros de causalidade, e para chegarmos a alguma resposta precisemos imaginar outra cadência de efeitos.
Abrimos o livro e quando olhamos pro lado, há uma criança de 8 ou 9 anos de mãos dadas com a gente, dando risadas. Ele nos trouxe até aqui e agora dá risadas. Por isso mesmo, e dessa forma, essa relação com a infância não vêm carregada de infantilidade. Aqui o mundo é um só, não há ingenuidade, a infância é onde a linguagem pode ser radical, assim como o desejo, e o violento, violento mesmo, porque há também, uma espécie de abandono em jogo. Trazendo memórias (suas? de quem?) à tona, Bady boy não insinua, ou enaltece, uma suposta ingenuidade do tempo de criança, no máximo a crueldade vilanesca, e por vezes cômica que o universo infantil também carrega. E é pelas palavras dos outros – os roubos, os delitos – que conta essas memórias.
Convocando o outro, esse vítima do roubo e que agora somos nós, a imaginar com ele o que é o Dragão, qual a cara do Bady boy, ou dos Bady boys, e quem afinal é Arrepio. As palavras que ele buscou para escrever a história do seu quadrinho de criança são palavras que vieram de outras bocas, de outras cenas, e essa talvez seja a grande questão do livro: a investigação de uma subjetividade própria a partir de outras línguas e linguagens. Esse colapso entre o corpo e o mundo, essa interconexão das experiências vividas, o borramento quase total de fronteiras. Podemos falar no esvaziamento da autoria? Ou devemos falar sobre o preenchimento desse corpo autor experimentando o mundo pela boca? Caíque captura palavras e as ordena buscando criar para esses personagens um corpo? Ou para inventar para si um corpo? O fato é que os personagens vão se multiplicando pelas páginas: Rosana, Madson com problema de córnea, Pedro, Oruam e todos eles dizem algo que outro também diria, porque a voz que diz, em alguma medida, têm uma língua que nunca é uma só e sempre é uma só.
Começamos com um colchão em chamas, terminamos admirando uma vela, velando um corpo. A travessia – uma travessura – que o livro propõe é fragmentária, tentamos capturar o fio – o frame – e falhamos, ele escapa para a próxima página, tentamos de novo, já estamos em outro lugar, é preciso aprender a se deleitar na linguagem para tomar Badyboy nos braços, descer rio abaixo. É confiando o olhar a essa profusão de imagens que se começa a entender o que acontece aqui: a própria vida, absolutamente espantosa, completamente fragmentada, confortável assim. E nós tentando costurar os fios – a criança ri da nossa cara, escapuliu das nossas mãos.
Caique não costura fio nenhum, o Dragão está à solta, assim ele começa e assim ele termina o livro, à solta. Se eu ainda não aprendi nada com a criança que ri, eu pergunto: O Dragão é a linguagem? Ser liberto do Arrepio, afinal, é algo bom? Será que é a linguagem – um bafo quente – quem liberta o Badyboy? A que custo? Ó não, o grande Badyboy está à solta. Esse pequeno trecho, singelo e complexo, essa história, sem binariedades, carrega essa infância sem ingenuidade, nos apresenta um enredo em que não sabemos quem é o vilão e quem é o mocinho – não há vilão, não há mocinho, há nosso vício em buscá-los –, mas entendemos que somos todos – absolutamente todos – reféns, e talvez, seja enquanto reféns que devamos ler essas palavras. Reféns de um jogo travesso com a linguagem, rindo sem saber do que, chorando sem saber porque, jogando pique e pega, absortos, absurdos, reféns. Nessa leitura não há escape, estamos todos com a câmera numa mão, como num sonho surreal, a carteira na outra, e a língua atada ao verbo absortos, absurdos, reféns ao prazer de fazer cara feia às vezes. A criança ri.


